sábado, 1 de maio de 2010

Diários da inocência perdida


Blog do Luciano Trigo - Portal G1
O cotidiano, os sonhos e os medos de seis adolescentes de vida nada fácil
Parece difícil imaginar que exista alguma poesia na rotina de adolescentes sexualmente exploradas, mas é esta a primeira surpresa que se tem na leitura de As Meninas da Esquina, da jornalista Eliane Trindade (Record, 420 pgs. R$ 47,90). Geralmente relegadas ao silêncio e ao anonimato, as protagonistas desse drama social ganham voz e vida nos relatos reunidos no livro. E mostram – outra surpresa – que são muito parecidas, na forma de sentir e pensar, com garotas de outras classes sociais – apesar de conhecerem, desde muito cedo, uma realidade marcada por abusos, pobreza e violência.
As histórias contadas por Natasha, Britney, Milena, Yasmin, Vitória e Diana não são nada inocentes: uma delas começou a se prostituir aos 9 anos, outra se relaciona com um presidiário e é mantida por uma facção criminosa, outra sofreu abusos do padrasto, na infância. E o mais grave é pensar que esses enredos continuam a ser vividos rotineiramente no país. Nesta entrevista, Eliane Trindade fala sobre a gênese de As meninas da esquina e a difícil tarefa de retratar com delicadeza uma de nossas tragédias sociais.
O livro deu origem ao filme Sonhos roubados, da cineasta Sandra Werneck, que estreia esta semana nas principais capitais do país.


- Fale sobre a gênese do livro As Meninas da Esquina. Como surgiu a idéia, e como ela se materializou?
ELIANE TRINDADE: Acompanhar a rotina de meninas prostituídas por meio de diários surgiu como uma ideia de pauta a ser proposta a uma revista feminina. Mas nem cheguei a propor a reportagem, quando me dei conta de que tamanho esforço de apuração seria melhor aproveitado no formato de livro. Busquei apoio de uma ONG ligada ao tema, a Childhood Foundation (WCF-Brasil), que me colocou em contato com instituições em diferentes estados em três regiões (Norte, Nordeste e Sudeste). Assim, seis meninas com idades entre 14 e 19 anos na época, concordaram em participar do projeto e durante um ano fizeram diários – escritos e gravados – para o livro, sob a minha supervisão.
- Qual o grau de edição dos relatos das adolescentes reunidos no livro? Que critérios você seguiu? O livro tem uma “mensagem”?
ELIANE: As meninas me mandavam cópias dos diários e as fitas a cada mês. Com o material bruto em mãos, eu voltava a falar com elas, por telefone ou pessoalmente, para preencher as lacunas dos relatos, de forma a contextualizar fatos e esclarecer passagens mais obscuras. Fazia, então, uma edição do texto, tentando deixá-lo o mais coloquial possível, numa linguagem mais próxima da oral. O livro não tinha “uma mensagem”, mas o desejo de dar voz a meninas que não costumam ser ouvidas. Nas próprias palavras delas, os diários relatam as suas histórias, contemplando não só a questão da exploração sexual, como também todas as outras que permeiam a vida destas seis garotas brasileiras.

‘Apenas uma delas hoje tem uma fonte de renda e saiu das ruas. Trabalha como merendeira. Uma morreu atropelada e outra está desaparecida há mais de um ano. As demais continuam vulneráveis e sobrevivendo a duras penas’

- Você voltou a ter contato com essas meninas recentemente? A vida delas mudou?
ELIANE: Não tenho mais um contato continuado com todas elas, mas procuro saber periodicamente como estão. Desde o começo, era claro para elas e para mim que o livro não era um projeto “redentor”. Para mudar a vida de uma menina da esquina é preciso bem mais, embora os direitos autorais do livro tenham sido doados integralmente a elas. Apenas uma delas hoje tem uma fonte de renda e saiu das ruas. Trabalha como merendeira. Uma delas morreu atropelada e outra está desaparecida há mais de um ano. As demais continuam vulneráveis e sobrevivendo a duras penas. Enfrentam enormes dificuldades para buscar alternativas, uma vez que mal sabem escrever.
- Os desejos e sonhos das meninas são muito próximos dos das garotas de classe média da mesma idade, mas os medos e angústias são muito diferentes. Fale sobre isso.
ELIANE: O livro mostra o quanto as meninas da esquina são próximas de qualquer outra da mesma idade. São adolescentes que dividem sonhos e angústias próprios de uma fase sempre muito difícil, com o agravante de que elas precisam batalhar para sobreviver. Como estão em uma situação de vulnerabilidade extrema, as emoções também são superlativas. Seja quando amam, quando sofrem ou quando se divertem.
- O livro evita rótulos e julgamentos morais. Você considera que a questão moral não deve fazer parte do debate sobre a exploração sexual de meninas?
ELIANE: Ao final da leitura, espero que os julgamentos fáceis e apressados sejam deixados de lado. A complexidade do tema dispensa moralismos. Todos os aspectos devem ser levados em conta para enfrentar um problema que exige comprometimento de todos os envolvidos – tanto das próprias meninas, quanto de suas famílias, do governo e da sociedade.
- Qual você acha que deve ser a responsabilidade das famílias, do Estado e da mídia para se lidar com esse problema de forma mais eficaz?
ELIANE: No capítulo final do livro, foram listados 100 temas tirados dos diários e que dizem respeito a todas as esferas da vida das meninas. Gravidez na adolescência, acesso aos serviços de saúde, falência da educação pública, precariedade de moradia, uso de drogas, violência doméstica, abuso de autoridade. A lista é enorme e elas denunciam cotidianamente o quanto os seus direitos básicos não estão minimamente garantidos. Cabe à mídia denunciar e também cobrar dos governos políticas públicas eficientes para esta parcela da população. A desestrutura familiar também é outro importante aspecto. Os pais são os grandes ausentes dos diários das meninas da esquina.
- O que você achou do filme “Sonhos roubados”? Participou da adaptação?
ELIANE: Não participei diretamente da adaptação, embora tenha acompanhando todo o processo. A tarefa de Sandra Werneck de levar para a telona um tema tão árido era difícil. Mas a diretora conseguiu tratar com delicadeza um tema que poderia facilmente ser apelativo. Como obra de ficção, “Sonhos Roubados” passa o recado e ao mesmo tempo aproxima o espectador da realidade das meninas da esquina, em um tom próximo do documental.

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